Kult: Divinity Lost

Kult: Divindade Perdida é a reedição do RPG sueco de terror da década de 1990, usando as regras modernas do Powered by The Apocalypse (PbtA), com algumas modificações como o uso de d10 em vez de d6.

Ato I: Personagens

A primeira parte do livro é voltada para os jogadores e para explicar a criação de personagem. Usando um estilo que já é comum nos jogos do PBTA (e em Feng Shui 2), os personagens são baseados em Arquétipos. Com isso montar a ficha é rápido e simples (depois de Shadowrun eu passei a valorizar mais a simplicidade e facilidade de construir personagens).

Existem 3 tipos de arquétipos:

  • Sleeper, que representa a maioria da humanidade ainda inconsciente do que existe algo além da ilusão.
  • Aware são os personagens que estão cientes de que existe algo de estranho na realidade;
  • Enlightened compreenderam a realidade o suficiente para aprender a manipulá-la;

O livro contém 20 Arquétipos de personagens Aware:

O Acadêmico
O Agente
O Artista
O Vingador
O Destruído
O Carreirista
O Criminoso
O Amaldiçoado
O Vigarista
O Herdeiro
O Detetive
O Vazio
O Andarilho
O Atravessador
O Ocultista
O Profeta
O Ronin
O Cientista
O Curioso
O Veterano

O Sleeper é um arquétipo especial que representa todos que vivem satisfeitos na Ilusão e segue regras um pouco diferentes dos demais. A sugestão é que, se for usar o arquétipo sleeper, todos os jogadores comecem como sleepers.

Posteriormente, o personagem pode evoluir para um Arquétipo Enlightened. No fim do livro, 4 arquétipos desse tipo são mostrados, mas eles são voltados para um estilo mais avançado de jogo. Futuras expansões vão lidar mais com esse nível avançado de jogo e trazer mais arquétipos Enlightened.

Criando um Personagem

Fazer um personagem em Kult é bem simples mesmo:

Passo 1: Escolher o Arquétipo

Determinado a jogar com um Arquétipo, o jogador olha a ficha e escolhe uma Ocupação, um Segredo Sombrio, duas Desvantagens e três Vantagens. Cada arquétipo vem com sugestões para essas opções – é só marcar a que você escolher (ou se nenhuma lhe agradar, olhar no capítulo correspondente para ver outras possibilidades de escolha).

Exemplo de um Arquétipo – fazer um personagem é apenas escolher as opções dadas
  • O Segredo Sombrio forma a base da história e o jogador deve escolher um que esteja confortável para jogar e que seja ao mesmo tempo assustador e interessante.
  • Desvantagens podem ser internas (Mentiroso, Pesadelos) ou externas (Nemesis, Procurado).
  • Vantagens são habilidades especiais que dão um movimento extra ou algum bônus ao personagem, como, por exemplo Exorcista:

Passo 2: Definir os Atributos

O jogador também determina os 10 Atributos do personagem, escolhendo os modificadores (entre +3 e -2). Os Atributos são de dois tipos: Passivos e Ativos.

Para os Atributos Passivos (Fortitude, Willpower e Reflexes), os jogadores distribuem os valores de +2, +1 e 0.

Atributo Para que serve [movimento básico]
Fortitude representa a resistência física [Endure Injure]
Willpower representa a resistência mental [Keep it Toghether]
Reflexes rapidez de reação [Avoid Harm]

Para os demais Atributos, os jogadores distribuem os valores de +3, +2, +1, +1, 0, -1 e -2. Os atributos ativos são usados quando o personagem faz alguma ação:

AtributoPara que serve [movimento básico]
Reasoncapacidade analítica [Investigate]
Intuitionempatia e intuição [Read a Person]
Perceptionalerta e observação [Observe a Situation]
Violenceforça bruta [Engage in Combat]
Coolnessdestreza e furtividade [Act Under Pressure]
Charismacharme e liderança [Influence Other]
Soulpercepção do sobrenatural [See Throught the Illusion]

Quando fizer um movimento o jogador faz uma jogada de 2d10 + Atributo. (Ex: 2d10 + Charisma), com resultados que podem ser sucesso total (15 ou mais), sucesso com complicação (de 10 a 14) ou falha (9 ou menos).

Passo 3: Estabelecendo as Relações

Depois de escolher um nome e aparência do personagem, o passo final é determinar as Relações entre os personagens e com três npcs que o jogador pode criar e nomear. Relações podem ser neutral (0), meaningful [significativa] (+1) e vital (+2). Após cada sessão de jogo, essas relações podem aumentar ou diminuir e o personagem pode estabelecer novas relações com outros npcs importantes.


Os Atributos passivos merecem um pouco mais de detalhe, pois servem para resistir aos ataques físicos e mentais:

Mantendo sua Sanidade

Se Rastro de Cthulhu tem a regra de Estabilidade e Sanidade, como se mede a reação do personagem aos horrores de Kult? A força e condição mental do personagem é medida pela Estabilidade. Ela começa em Composed e desce até o personagem perder todo o controle sobre sua mente.

Em resposta a experiências traumáticas ou supernaturais, o jogador testa o movimento Keep it Together, jogando 2d10 + Willpower. Um sucesso parcial (10-14) abala o personagem, deixando-o nervoso, triste, assustado, culpado, obcecado ou distraído e reduz a Estabilidade em 1. Uma falha (9 ou menos) pode fazer com que o personagem entre em Pânico ou reduzir a estabilidade em 2 ou 4, representando um trauma emocional.

EstabilidadeEfeito
Composed
UneasyStress moderado (-1 testes de Desvantagem)
Unfocused
ShakenStress sério (-1 Keep it Togheter e -2 em teste de Desvantagem)
Distressed
Neurotic
AnxiousStress crítico (-2 Keep it Togheter, -3 em teste de Desvantagem e +1 para See Through the Illusiun)
Irrational
Unhinged
BrokenO Mestre tem várias opções do que pode acontecer.

Recebendo feridas

O personagem pode tentar evitar ser ferido, usando reflexos para se esquivar, aparar ou bloquear um ataque (2d10 + Reflexes).

O teste de resistência a dano físico é feito com o movimento Endure Injury (2d10 + Fortitude – Harm).

Quando o personagem é atingido por um ataque físico, ele pode ficar apenas atordoado, sofrer uma ferida séria (que precisa ser estabilizada por primeiros socorros) ou até mesmo receber uma ferida crítica (só é curada com atendimento médico).

O personagem pode sofrer até 4 feridas sérias, mas apenas uma ferida crítica. Enquanto estiver com uma ferida séria não-estabilizada ou com uma ferida crítica, o personagem tem -1 em todos os testes (-2 se tiver as duas).


Ato II: Narração

A segunda parte do livro têm os capítulos ensinando ao narrador como mestrar uma campanha de Kult. É um dos melhores livros que já li nesse aspecto, com boas dicas para como preparar um jogo de horror.

Os sistemas baseados no Apocalypse Engine têm a característica de serem guiados por princípios para os narradores e jogadores, que estimulam a seguir o tom proposto pelo jogo. No caso de Kult, esses princípios servem para passar a sensação de um jogo de horror, simplificadamente, são:

  • insinue a existência do sobrenatural,
  • se dirija aos personagens e não aos jogadores,
  • mantenha o foco no que acontece no jogo (a ficção),
  • dê uma motivação e lógica interna a todos os seus npcs,
  • construa sua narração a partir de perguntas e incorpore as respostas dos jogadores,
  • seja um fã dos personagens dos jogadores.

Uma das maiores dificuldades de um jogo de RPG de horror é manter o clima de jogo, que pode ser facilmente destruído por piadas fora de hora, falta de atenção ou simplesmente pelos jogadores preferirem um jogo mais leve. Para evitar isso, o livro sugere as bases de um contrato de horror, que envolve ações do narrador para manter o tom de uma narrativa de horror e estabelecer os limites de jogo.

Em campanhas mais curtas ou mais focadas, todos os jogadores podem compartilhar um mesmo Segredo Sombrio ou ter um tema pré-determinado para a escolha dos segredos, estabelecendo conexões entre eles, o que facilita a cooperação entre os personagens.

A partir dos Segredos Sombrios e Desvantagens dos personagens, o narrador deve construir um mapa de intriga, com os eventos, lugares e npcs importantes. Esse mapa vai crescendo ao longo das sessões de jogo, mostrando as interligações entre os personagens e a trama e os resultados de suas escolhas.


O Mapa de Intriga liga os personagens a eventos, pessoas e lugares

O livro dá boas sugestões de como estabelecer uma campanha longa ou um cenário mais curto e de como fazer a primeira sessão. As dicas facilitam muito fazer uma campanha no estilo PbtA, em que a história é criada com base em uma premissa inicial, mas os detalhes são desenvolvidos a partir dos personagens.

A ideia é de criar Ameaças baseadas nos eventos, lugares, objetos e oponentes mencionados no mapa de intriga e ligá-los aos inimigos – os Alto-poderes e facções do universo de Kult. Assim, o narrador pode ter uma base para estabelecer quais são as Forças em jogo. As regras de criação de oponentes também são bem simples e facilitam o trabalho do mestre, lembrando que esse é um sistema em que o narrador não joga dados.


Ato III: Cenário

A terceira parte do livro trata do cenário de Kult. O cenário é extensamente desenvolvido, mas falar muito sobre ele pode perder parte da graça de um jogo de horror – em que o divertido é enfrentar o desconhecido. Só para ter uma ideia, são 12 capítulos detalhando vários aspectos do universo de Kult.

O cenário é inspirado na Cabala, uma tradição esotérica oriunda do judaísmo, e também pelo gnosticismo e dualismo. Basicamente – e sem grandes spoilers -, nossa realidade é uma ilusão em que a humanidade foi aprisionada pelo Demiurgo. Algum tempo atrás, o Demiurgo desapareceu. Com isso, algumas pessoas começaram a perceber a existência da ilusão e ter contato com outros planos – Gaia, o Submundo, Inferno, a Terra do Sonho, Metropolis – a antiga cidade do Demiurgo da qual os humanos foram expulsos. Além disso, essas pessoas começaram a desenvolver poderes sobrenaturais, como a magia, ou a fazer pactos com outras entidades poderosas dos demais planos.

Entretanto, existem outros seres que não querem que a humanidade desperte. Antigos serviçais do Demiurgo, como os Arcontes. E seus inimigos, os Anjos da Morte. Essas facções – além de brigarem entre si – tentam manipular e controlar a humanidade.

As regras do jogo são ótimas para cenários de horror ou suspense sobrenatural, com um tom que pode ir desde séries/livros/quadrinhos como Hellblazer, True Detective, Preacher e American Gods até filmes de horror mais explícitos. Outra boa inspiração são os livros de Tim Powers, como Last Call e Declare. Kult seria um ótimo sistema para uma história de horror inspirada em True Detective e que ao mesmo tempo tente se afastar um pouco do agora já muito conhecido terror Lovecraftiano.

Também pode servir para jogos de horror mais viscerais, inspirados na literatura fantástica e de horror de Clive Barker, embora minha preferência pessoal seja mais pelo terror insinuado do que o abertamente mostrado.

Um dos aspectos mais interessantes de Kult é o fato das regras dessa nova edição serem relativamente simples e do estilo das regras do Powered by the Apocalypse estimular um jogo mais aberto, sem tanto planejamento e buscando evitar uma história railroad dirigida pelo narrador.

Post Scriptum: The Black Madonna

Junto com o Kickstarter, veio a edição de algumas campanhas de Kult. Entre elas, a adaptação de Black Madonna, uma campanha clássica da edição antiga que nunca teve uma edição em inglês. O livro é bonito e a história é interessante.

Infelizmente, os cenários prontos vão ao contrário da própria ideia do sistema – e das sugestões dadas na parte do mestre. Eles são bem dirigidos/railroad e parecem mais um RPG de Dungeon Crawl (especialmente Black Madonna), com preocupação em combate e exploração de mapas. As ideias da trama da famosa [para os fãs de Kult] campanha são boas, mas faltou algo na execução do cenário e ele é meio decepcionante.

A adaptação da aventura da edição anterior poderia ter considerado a proposta mais narrativa da nova edição. Se tivesse tido um pouco mais de trabalho de adaptação ao estilo Powered by the Apocalypse, teria ali todo o material para uma campanha terrível envolvendo a Segunda Guerra e o Muro de Berlim sandbox.

É possível adaptar, especialmente se o mestre estiver disposto a largar a trama railroad e improvisar. A pena é que está longe de uma campanha que poderia ser genial se explorasse o estilo sandbox de construção e apresentação de campanhas The Armitage Files e Dracula Dossier (campanhas para Rastro de Cthulhu e Night Black Agents).

Conclusão

A edição que veio para quem apoiou o Kickstarter é especial, sem censura nas imagens. A edição “normal” posterior sofreu algumas modificações para poder ser vendida em lojas.

Somando tudo, a nova edição é muito boa. Bem diferente das regras da antiga edição – que pelo pouco que sei era bem pesadas, no estilo anos 1980/início dos 1990. As novas regras tornam Kult: Divinity Lost mais adaptado a um estilo narrativo de jogo que tem tudo a ver com um jogo moderno de horror e é bem mais fácil de narrar/aprender a jogar.

A sugestão: escolha uma cidade e crie um cenário baseado nas ideias de criação do livro básico, esquecendo os cenários prontos. Aí é que Kult pode brilhar.

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