Blade Runner RPG

Blade Runner é um RPG temático de investigação em um “futuro”-noir. O futuro fica entre aspas, pois é um futuro do pretérito. O futuro dos anos 80. Carros voadores, corporações ultrapoderosas, devastação ambiental, chamadas de videofone públicos (lembranças do orelhão que eu usava como referência de casa, até que tiraram da rua). Isso conjugado com uma trama de detetive clássica dos anos 40, com ambientes escuros e sujos, protagonistas cínicos, anti-heróis e femme fatales.

A Free League é boa nisso, de captar um estilo e fazer jogos focados em um tema, como Alien ou Forbidden Lands. As regras de cada jogo têm pequenas variações nas regras básicas do sistema que ela criou, que reforçam a narrativa buscada. Em Alien era o terror, em Forbidden Lands, a exploração e busca de tesouros. Assim ela estabelece bem no início os temas principais de Blade Runner – ação sci-fi, drama pessoal, intriga corporativa, conflito moral e descoberta interior. Além disso, no jogo, pelo menos até que saiam novos suplementos, todos os personagens dos jogadores são Blade Runners – detetives da polícia de Los Angeles que cuidam de casos envolvendo replicantes.

Fechado o escopo do jogo, vamos as mudanças nas regras para quem já jogou um jogo do Sistema Year Zero. O principal aqui são os dados. Ao contrário de Alien, que usa apenas D6 e o jogador acaba rolando muitos dados, Blade Runner RPG usa uma variante da regra do Year Zero Engine, em que os jogadores rolam apenas 2 dados (um para o atributo, outro para a perícia), variando de D6 a D12. Um resultado 6 ou mais é sempre um sucesso (marcado por um símbolo de olho nos dados temáticos). Um resultado 10 ou mais conta como 2 sucessos. Ou seja, quanto melhor o dado, mais chance de sucessos na jogada. Essa variante apareceu pela primeira vez no Twilight: 2000, o jogo da Free League sobre a Terceira Guerra Mundial.

O personagem pode ganhar uma Vantagem (permite rolar um terceiro dado) ou ter uma Desvantagem (remove um dado, ou seja, ele joga apenas um dado). E, como em todos os jogos do YZE, se falhar no teste, ele pode forçar a jogada (Push), jogando de novo os dados (exceto se o dado inicial tiver o resultado 1). Mas nesse caso, um resultado 1 significa que o PC tomou um dano (teste físico) ou ganhou stress (teste mental). Por isso, o número 1 nos dados de Blade Runner tem o símbolo de um origami. Replicantes podem fazer um segundo push e sempre sofrem stress, mesmo se for um teste físico.

Um jogador pode receber uma ajuda de outro, ganhando uma Vantagem (o terceiro dado nesse caso será igual à perícia do ajudante).

Dois sucessos ou mais representam um sucesso crítico. Um bônus que depende da situação e perícia utilizada. Em combate, além disso, cada sucesso extra causa um ponto de dano a mais.

o Futuro Pretérito

Blade Runner se passa em Los Angeles degradada pela destruição ambiental em um mundo que caminha para a destruição. O nível do mar subiu e uma muralha foi criada para proteger partes da cidade. Milhões de refugiados aumentaram a população da megacidade de Los Angeles, morando em prédios antigos ou em novos prédios malfeitos nas colinas que um dia foram verdes. Quem tem dinheiro, vive em edifícios altos, com centenas de andares, construídos por cima dos prédios antigos e usando estes como base para suas fundações reforçadas. Os andares mais baixos viraram suporte para os andares altos, com os ricos vivendo no topo e os pobres soterrados na sombra e poluição. Quem nasce no centésimo andar de um prédio tem direito a uma vida inimaginável para aquele que mora nos 50 primeiros andares ou, mais ainda, daquele que está no solo. E, por sua vez, pode apenas invejar quem mora a partir do 250 andar e acreditar que seu emprego corporativo fará com que ele possa comprar uma apartamento mais acima. Ganância versus sobrevivência. Refugiados continuam a chegar na cidade, vindo das regiões desoladas que um dia foram um país e até mesmo de outros continentes.

Porque lá fora dos limites da megacidade é ainda pior. A região em torno das ruínas de San Diego, a parte de baixo dos viadutos de velhas autoestradas abandonadas, a zona além das fazendas de comida sintética, são todas áreas sem lei.

Devem haver outras megacidades por aí, Nova York, Londres, Berlim, mas elas estão distantes e viajar não é uma opção, exceto para o topo do topo da pirâmide. O cidadão comum pouco sabe do que acontece fora de LA. E, provavelmente, elas são tão ruins quanto LA. A Terra está ferrada.

A esperança são as colônias no espaço, mas estas também estão fora do alcance da maioria das pessoas. Emigrar é apenas para quem tem dinheiro ou passa no teste. O grande sonho de boa parte da população é sair da Terra antes que ela acabe de vez. Existe todo um mercado de dinheiro e aulas para isso. No entanto, a chance é que você seja um dos que não tem recursos ou habilidades que garantam uma passagem para fora. E acabe como um dos “Especiais”, aqueles que perderam no teste e nunca vão ter a chance de escapar pelo LAX.

É o espaçoporto de Los Angeles, LAX, que liga a cidade aos mundos exteriores. A maioria dos habitantes nunca botou o pé no espaçoporto, podendo, se muito, ver as espaçonaves que fazem a ligação com as estações orbitais. Claro, isso se viver em algum lugar que permita ver um pedaço do céu e ter a sorte de um dia sem nuvens.

Os mais velhos dizem que a vida era melhor no tempo deles, no início dos anos 20. Antes do Blackout. Quando uma bomba EMP apagou a Costa Oeste – energia, dados, dirigíveis. Centenas de milhares morreram no caos que se seguiu. A recessão que se seguiu fez com que megacorps fossem a falência, outras se relocassem para as estrelas. Até a Tyrell Corporation faliu. Milhões ficaram desempregados.

O Blackout gerou uma sensação de desconfiança da tecnologia pela população. Ludita diriam alguns, embora poucos saibam o que significa esse termo. A tecnologia não avançou tanto nesse futuro do passado. Apesar disso, dizem que os moradores dos últimos andares tem acesso à coisas que a maioria da população mal pode imaginar. Maravilhas da biotecnologia e produtos das colônias espaciais. E que você pode comprar no mercado negro, se tiver os chinyens para isso.

Criando um Personagem

Uma das coisas que eu gosto nos jogos do YZE é que criar um PC é rápido e simples, baseados em arquétipos. Nada de precisar de um programa para criar o personagem (Star Wars, Shadowrun e GURPS, a carapuça é de vocês mesmo). Em Blade Runner RPG primeiro você escolhe se seu policial será um humano ou replicante. Os Arquétipos são bem genéricos, mas já dão um norte para interpretar o personagem. Alguns deles são específicos de humanos e o doxie é sempre um replicante.

ArquétipoH/RDescriçãoAtributo
AnalystH/Ranalista de laboratório, especialista forenseInteligência
CityspeakerHagente infiltrado, conhecedor da cidadeEmpatia
DoxieRcriado geneticamente para manipular os outrosAgilidade
EnforcerH/Respecialista em armas e operações especiaisForça
FixerH/Rpolicial de carreira com muitos contatos na cúpulaEmpatia
InspectorH/Rdetetive clássico, investigadorAgilidade
SkimmerH“tira sujo”, o policial sem escrúpulosEmpatia

Os replicantes começam sempre como recrutas, enquanto os humanos podem ser policiais com mais experiência. Recrutas começam com mais pontos de Atributos, mas menos Perícias, Especialidades, Pontos de Promoção e Chinyen (a moeda do jogo). Replicantes ganham 1 ponto adicional de Atributo para aumentar Força ou Agilidade, mas por outro lado, começam com 1 ponto a menos de Promoção e de Chinyen.

Os Atributos começam sempre no Rating C (D8). Usando os pontos de atributo, o jogador pode aumentar os atributos de seus personagens para B (D10) e A (D12). Essa regra não é novidade e lembra a do Savage Words. O Atributo Principal de seu arquétipo deve sempre ser, pelo menos, nível B. O jogador pode diminuir um dos atributos para D (D6) para ganhar mais um ponto e aumentar outro Atributo. Atributos nunca aumentam depois do início do jogo.

A ideia de usar atributos como letras de A a D é bem temática, pois revendo o clássico (algo que é obrigatório para quem quer jogar ou narrar o sistema) você percebe que os replicantes são clássificados com letras. Roy (o replicante de Rutger Hauer) é um mental e físico A, enquanto o primeiro replicante é um físico A, mas mental C.

As Perícias também se classificam com letras, mas começam no nível D, indicando uma perícia em que o PC não tem treino ou sabe apenas o básico. Elas podem ser aumentadas usando os pontos inicias de Perícias (e com Pontos de Promoção no futuro). Cada arquétipo tem 3 perícias chave, que devem começar em, pelo menos, nível C (você é forçado a gastar alguns pontos iniciais nessas perícias).

Health é a soma dos dados de (Força + Agilidade)/4. Resolve é a soma de (Inteligência + Empatia)/4. Os valores são sempre arredondados para cima (ex: Força D8 + Agilidade D10 = 18/4 = Health 5). Replicantes são mais fortes e menos estáveis mentalmente, por isso ganham +2 em Health e -2 em Resolve.

Especialidades são habilidades especiais que personagens mais experientes possuem. Recrutas começam sem nenhuma especialidade, enquanto experientes tem uma, veteranos têm duas e a velha-guarda três especialidades.

O próximo passo é jogar por uma Memória-Chave, relacionada a alguma evento de seu passado. A escolha é feita jogando em 5 tabelas (Quando? Onde? Quem? O Quê? Como?) que formam a memória. O ideal é deixar os dados fazerem a escolha aleatória e ver o que sai daí. Uma vez por sessão, o PC pode usar a memória chave em um teste de perícia, ganhando uma vantagem no teste (se falhar, ganha um ponto de stress).

O jogador também joga nos dados para criar um Relacionamento Chave (Quem é ele? Qual sua relação? O que está acontecendo?) e, por fim, para criar um Item Pessoal (um item de valor sentimental que permite recuperar um ponto de stress ao se relacionar com ele – mesma mecânica do Alien RPG).

Promotion Points são o xp do jogo. Podem ser gastos para aprender uma especialidade (5 pontos), fazer um teste de Conexão para requerer equipamento especial ou usar os recursos do Departamento de Polícia ou fazer um teste de Conexão para trocar um ponto de Promoção por um Ponto de Chinyen, representando que você pediu um aumento salarial (se perder no teste, não ganha o aumento, mas perde o ponto de Promoção do mesmo jeito).

O personagem ganha pontos por resolver casos, aposentar replicantes e avançar a trama. A diferença é que ele pode perder Pontos de Promoção! Sempre que o PC perder um ponto de promoção ele deve fazer um teste da perícia Conexão. Se falhar, ele sofre uma ação disciplinar. E se ele for um replicante e chegar a zero pontos, ele deve fazer um Baseline Test, para testar sua estabilidade mental. Se passar, no teste, o replicante ganha um Ponto de Promoção.

O melhor de tudo, esse jogo tem uma segunda forma de xp! Pontos de Humanidade. Esses são ganhos ao final da sessão por atos de compaixão e humanidade. O PC também recebe um ponto se usar uma Memória Chave durante a sessão, interagir com seu relacionamento chave ou falhar em um Baseline Test (se for um replicante). Eles podem ser gastos para aumentar as perícias.

O arquétipo do jogador também determina qual o dado que ele irá jogar para decidir com quanto dinheiro (Chinyen Points) ele começa. Esse valor é modificado pelo número de anos na Força Policial e representa as economias de uma vida de trabalho para a polícia de LA.

Combate e Perseguição

A iniciativa em combate é igual a Alien, usando um baralho de 10 cartas, o número da carta determina a ordem de ação, começando do mais baixo para o mais alto. A iniciativa só é tirada no primeiro round de combate. Um personagem pode trocar a iniciativa com outro que ainda não tenha agido no turno.

Todo personagem tem direito a uma ação e um movimento em sua vez de agir e a área de combate é dividida em zonas.

Um ataque em close combat é sempre uma jogada oposta (o atacante e o defensor testam perícia hand-to-hand, o vencedor acerta e dá dano). Se o defensor estiver surpreso, ele não tem direito a jogar e é um teste simples do atacante. Se você causar um ataque de oportunidade, também não tem direito a jogar.

Um personagem recupera 1 ponto de Health por Downtime (2 se for replicante), ou seja, por gastar um Shift (turno) relaxando, seja em casa ou em um nightclub, ou qualquer outra forma em que o PC relaxe. Ajuda médica também serve para recuperar saúde.

Dois sucessos ou mais em um ataque, causam um dano crítico no adversário. Que nem em Star Wars, existe uma tabela de danos críticos que vai de danos mais leves até danos letais. Os danos mais letais só são causados por armas pesadas. Existem danos críticos que podem resultar na morte, se não forem tratados com sucesso. Um 12 é sempre uma morte instantânea (uma arma que tenha um crítico D12 é perigosa). Ou seja, o jogo pode ser bem letal.

Stress é um pouco diferente (mas lembra a regra de Alien). Se o stress do personagem igualar ou exceder seu Resolve, ele faz um teste de Empatia e vê qual o efeito em uma tabela de stress crítico. Os efeitos do stress duram até ele ganhar um ponto de Resolve.

Existe também regras especiais para perseguição, seja a pé ou em veículos. As regras parecem ser simples e divertida. A cada rodada da perseguição:

  1. Cada participante selecionada uma manobra, em segredo.
  2. O narrador gera um obstáculo.
  3. O perseguidor e perseguido revelam sua manobra (podem decidir cancelar a manobra e não fazer nada).
  4. Perseguido age primeiro.
  5. Perseguidor age depois.
ManobraQuem podePerícia
Perseguir/FugirambosStealth ou Driving vs Observation
Esconder-sealvoForce ou Driving
BloquearalvoDriving
EngajarperseguidorMobility ou Driving vs Mobility ou Driving
AtirarambosRanged Combat
OutraambosVaria

Case Files

O jogo tem uma estrutura de ser formado por cenários curtos investigativos (os Case Files). Uma campanha é formada por vários casos. O capítulo do livro sobre narrar um jogo de Blade Runner não é muito grande. Algumas das dicas serão conhecidas para quem joga RPGs investigativos, como Rastro de Cthulhu. Uma delas é que o jogo não é sobre encontrar as pistas, mas sim como utilizá-las. Outra é não deixar o jogo parar por causa de uma pista que não foi encontrada.

Também define a estrutura básica de um Case File, com um prelúdio, um briefing, locais a serem investigados e NPCs importantes, levando ao confronto final e solução do caso. O narrador e jogadores devem controlar o tempo, pois a maioria dos Casos tem um prazo para serem resolvidos. O dia é dividido em Shifts (Manhã, Dia, Entardecer, Noite). Os personagens estão correndo contra o relógio para resolver o caso. Por isso, o jogo recomenda dividir o grupo (o que ajuda também a criar um cenário mais pessoal). Isso permite que os jogadores cubram mais lugares e encontrem mais testemunhas e pistas. Por outro lado, o narrador deve ter o cuidado de não deixar uma cena muito longa e mudar o foco entre os PCs.

O capítulos do narrador tem várias tabelas para ajudar o narrador a gerar os casos (tem algo nesse estilo os outros jogos da Free League, como Alien e Coriolis). Essa parte é bem legal e permite criar umas estruturas interessantes de casos, a partir de jogadas de dados em várias tabelas, inclusive com ambientação (um carro-voador ou drone no céu, operários passando de bicicleta, um holograma de propaganda projetado no ar, uma gangue emo a espreita na rua). No final, o narrador tem uma base a partir da qual ele pode preencher as lacunas e usar sua imaginação.

Conclusão

O livro é, para variar, muito bonito. As imagens evocam bem o tema e dão aquela inspiração para jogar. Quem estiver lendo o livro, pode rever os filmes e vai perceber vários detalhes legais bem representados na regra. Ponto para a Free League.

Como dito antes, o jogo é bem temático. As regras continuam simples. O resumo que eu fiz tem todas as regras principais. O sistema é fácil de aprender e de criar personagens. O jogador não precisa nem ler o livro de regras para fazer a ficha. O extremo oposto de Shadowrun que tem regras extensas, mas atinge seu objetivo. E hoje em dia tenho preferido jogos mais narrativos e sem excesso de regras (Shadowrun e seus dez subsistemas me dão pesadelos até hoje).

Mais um bom jogo da Free League, que se tornou minha editora preferida. Ainda não tive a oportunidade de jogar Blade Runner, mas Alien, Coriolis e Forbbiden Lands foram sistemas que eu testei e curti muito. Vai ser o próximo jogo a ser testado da lista.

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