Capítulo II
Segredos Revelados
Astray, imediatamente questionou Becklin sobre o conteúdo da carta: o que seria a Rosa Negra? Becklin, em resposta, endureceu a expressão. Ela explicou que não confiava em Astray e que o considerava algo próximo a um traidor. Ele, afinal desistira de seguir os antigos ensinamentos dos Deuses de Krynn, e abandonara sua obrigação como escudeiro dela. Porém, ela acreditava que não poderia ser mero acaso o fato de ter sido justamente Astray aquele escolhido pelo destino para lhe trazer essa carta. Talvez, enfim, os Deuses estivessem apontando a ele um caminho de redenção. Então Becklin decidiu lhe dar um voto de confiança, desde que ele desse a palavra de que tudo aquilo que ela lhe contasse a partir de então, ele deveria manter no mais absoluto segredo. Assim, Becklin Uth Viharin contou sua história à Astray Verda. Uma história que, ela pontuou, apenas seu grande e maior amigo, Ispin Greenshield, conhecia por completo.
Um dia, quando jovem, antes de se tornar uma Cavaleira da Solamnia, Becklin revelou, ela foi acometida de uma grave doença… e morreu. Sua família era pobre, de camponeses, e não tinha dinheiro para pagar um ritual de ressurreição. Porém, misteriosamente, sem nenhuma intervenção mística aparente, ela simplesmente voltou à vida 3 dias após sua morte. Tudo que ela lembrava era de algo como um sonho. No sonho, ela conversava com um Kingfisher, e ele lhe dizia algo sobre um campo verde no qual nascia uma rosa negra envolta em sombras. Mas ela não conseguia lembrar das palavras do pássaro. Após seu retorno do mundo dos mortos todos na sua vila passaram a lhe olhar com estranheza. Até mesmo seus pais tinham medo dela. Decidiram então a enviar a um monastério. Becklin não aceitou, e acabou fugindo de casa e eventualmente se uniu aos Cavaleiros da Solamnia, tornando-se mais tarde uma membro da Ordem da Rosa. Com os conhecimentos aos quais tinha acesso na ordem ela também esperava encontrar respostas para seu misterioso sonho com uma rosa negra durante sua morte. E foi assim que ela começou a se tornar uma especialista na lenda de Lord Loren Soth.
Soth teria sido um poderoso nobre e senhor de Daargard Keep, a fortaleza da região hoje conhecida como Nightlund. Grande guerreiro e estrategista, Soth era também vaidoso, ciumento e arrogante. Incumbido pelos Deuses de Krynn com a tarefa de deter o Cataclisma, Soth teria abandonado sua tarefa para confrontar sua esposa que ele acreditara que fora infiel, assassinando-a, por fim, e a seu filho recém-nascido de quem ele duvidava ser o pai. Graças a seu ato, que levou à morte de milhões de pessoas em Krynn, Soth foi condenado a vagar sobre a terra, mesmo depois de ter seu corpo consumido pelas chamas do Cataclisma, durante um ano para cada vida que ele deixará perecer. Soth se tornou uma figura de trevas e escuridão. Um Cavaleiro da Morte, o primeiro deles, vivendo a agonia de sua morte dia após dia. A maldade e cólera de Soth apenas aumentaram ao longo dos anos, e tendo ele sido um dia um Cavaleiro da Solamnia da Ordem da Rosa, passou a ser conhecido como a Rosa Negra.
Escondido, do lado de fora da entrada da sala onde Astray e Becklin estavam, Rhimarim ouvia ele também aquela narrativa. Mais cedo, Astray pedira a Rhimarim que investigasse o Amuleto do Rei Pescador que ele encontrara no corpo de Markam Vendri, em busca de propriedades mágicas. Com a ajuda de Archimond, Rhimarim descobriu que se tratava de uma antiga herança da família Vendri, da qual a matriarca, Nestra Vendri, era capitã da guarda de Kalaman. O Amuleto, também, sem dúvida tinha habilidades mágicas muito poderosas, mas que exigiam palavras de ativação específicas para funcionar. Rhimarim descobriu um grupo dessas palavras. Uma frase, em Istariano antigo, que deveria ser pronunciada para que o usuário se sintonizasse com o Amuleto e pudesse gozar dos benefícios da magia de proteção imbuída no item. A frase era traduzida para algo como “Que as asas azuis do Rei Pescador me guardem em todos os vôos“. A segunda frase de ativação, que invocava uma magia ainda mais poderosa e divina relacionada ao Deus Habbakuk, porém, Rhimarim não fora capaz de descobrir ainda. Com essas descobertas em mente, empolgado, Rhimarim decidiu ir em busca de Astray imediatamente. Sabendo que ele acompanhara Becklin até o Forte Thornwall, Rhimarim se decidiu a ir até lá, e assim que chegou, começou a ouvir o que Becklin contava, se escondendo, quase que instintivamente, para ouvir tudo que a Cavaleira contava.
Becklin pareceu intuir que estava sendo observada. Desconfiada, convidou Astray para acompanhá-la ao subterrâneo do forte, onde acreditava que poderiam conversar mais reservadamente. Furtivo, como poucas vezes fora em sua vida, Rhimarim os acompanhou em segredo para o que, a primeira vista, parecia ser uma adega, mas logo se revelou como um tesouro ainda maior: uma biblioteca subterrânea escondida sob o Forte Thornwall. Era aquela sem dúvida a biblioteca que Rhimarim buscara no ano interior, e que ninguém sabia que existia. O jovem estava absolutamente fascinado.
Dentro da biblioteca, Becklin agora recorreria a livros e iluminuras para contar a história da Rosa Negra com mais detalhes. Percebendo que Astray estava surpreso com tanto conhecimento ali escondido sob Vogler, a Cavaleira da Solamnia explicou como, durante o Cataclisma, a sua ordem havia conseguido resgatar uma pequena parte do acervo da lendária Biblioteca de Arzemund, uma das mais importantes do mundo pré-cataclisma. Rhimarim teve que conter um pequeno grito de excitação que quase chamou a atenção de Becklin e a fez mais apurar seus sentidos mais uma vez para tentar explicar a estranha sensação de estar sendo observada. Porém, antes que ela pudesse prosseguir, Astray entendeu por bem começar a contar detalhadamente a narrativa acerca do que acontecera no ano anterior na Noite do Olho, e sobre a suspeita dele, após ter ouvido o início da história de sua antiga mentora, de que o Cavaleiro Desmorto que eles haviam confrontado após ele se erguer de sua tumba próxima à Farpa era Soth. Mas Becklin explicou que não era Soth que eles haviam encontrado. Soth não tinha uma tumba, mas Zanas Sarlamir sim, havia tido parte de seus restos mortais ali há muito tempo selados. Segundo Becklin, Soth não fora o único que desafiara os Deuses. Outros Cavaleiros da Solamnia o acompanharam em sua derrocada e também foram amaldiçoados de forma similar. Esses outros eram conhecidos como os espinhos da Rosa Negra, os Blackthorn. Zanas Sarlamir era um deles e, embora não fosse tão poderoso quanto Soth, era ainda um ser maligno de grande poder e trevas. De qualquer forma, a presença de um Blackthorn, ainda que não fosse Soth, já era motivo de grande preocupação. Afinal, diferente do que muitos acreditavam, Lord Soth não era apenas uma lenda ou um inimigo de um passado longínquo. Loren Soth ainda caminha pelo mundo, e cerca de 20 anos antes, a busca de Becklin havia feito o caminho dela desgraçadamente se cruzar com o dele. E era aí que a pior parte de sua história começava. Antes de prosseguir, porém, a intuição de Becklin mais uma vez falou mais alto. Dessa vez sua percepção não falhou, e ela esticou seu braço para erguer diante dos olhos surpresos de Astray, Rhimarim, a quem ele ainda não percebera, e que estava escondido atrás de um barril de vinho.
O Festival do Rei Pescador
Após receber o escudo de seu pai, Martin ouviu de sua irmã Raenna também o último pedido dele. Ispin Greenshield, anualmente, participava ativamente do Kingfisher Festival. Produzia diversos barris de cerveja para serem distribuídos na festa; improvisava quartos extras no Brass Crab e os oferecia a preços bastante módicos para hospedar visitantes que vinham participar das festividades e, principalmente, ajudava a organizar o ponto alto da festa: a reencenação da Batalha da Colina Alta. Há muitos séculos, antes do Cataclisma, o antigo Império de Istar – do qual a Solamnia havia se tornado independente – enfrentara ali, na Colina Alta de Vogler, a brava resistência dos Cavaleiros da Solamnia auxiliados pelos corajosos pescadores do desde então pequeno vilarejo de Vogler. Ali as forças da Solamnia venceram gloriosamente as forças de Istar. E desde então – ou pelo menos assim contavam os anciãos da vila – Vogler usava o Kingfisher Festival para celebrar aquela importante vitória.
Ispin Greenshield era uma entusiasta especialmente daquele momento. Martin tinha visto muitas vezes seu pai se preparar quase o ano inteiro para aquele dia. Na reencenação a milícia da cidade – formada na sua maioria de pescadores e camponeses que Ispin e Umpton tentavam da melhor forma possível treinar – e mais alguns residentes, assumiam os papéis das tropas das Solamnia e das tropas de Istar, recriando os principais momentos do combate para uma plateia formada por toda a vila que assistia a tudo e arquibancadas de madeira montadas na crista da Colina Alta. Ispin sempre participava assumindo o papel de um dos comandantes da Solamnia. E o último pedido dele era que Martin o representasse e participasse da encenação. Tomado por um turbilhão de emoções e com a mente enevoada pelo álcool, o jovem guerreiro aceitou o pedido com o coração apertado de saudade. Raenna ficou feliz, e até sua madrasta esboçou um meneio de sorriso.
Retornaram, então para o Brass Crab onde outros ainda bebiam e festejavam. O funeral já havia se desdobrado nas festividades da cidade, e muitas outras pessoas ocupavam a taverna. Mordek e Ryushi, seus amigos, também estavam lá. Martin se permitiu por alguns instantes sorrir. Até que de repente uma figura ameaçadora adentrou no Brass Crab. Era um imenso semi-ogro, muito mais alto até mesmo que Martin que tinha cerca de 2 metros de altura, com uma fisionomia ameaçadora, pele azul esverdeada cheia de cicatrizes e com uma imensa lâmina que mais lembrava um cutelo do que uma espada dependurada nas costas. Todas as vozes na taverna silenciaram e algumas mãos pousaram nos cabos das espadas. Até que Ridomir “Cudgel” Ironsmile, a anã guerreira que comandava o Ironclad Regiment surgiu sorridente por entre as pernas do semi-ogro acalmando a todos e explicando que aquele era Gragohr um de seus homens que viera para Vogler juntamente com ela para para participar da festividades.

Martin não conhecia Gragohr, nem diversos dos mercenários que estavam ali. Todos deviam ter se unido recentemente ao Ironclad Regiment, depois que ele e Astray se afastaram. O grupo de mercenários comandado por Cudgel era um dos mais famosos e bem sucedidos da região. Há cerca de seis meses, quando ele e Astray deixaram o grupo, tinha cerca de 50 homens, contando com o segundo em comando de Cudgel – com quem, não raro ela se desentendia – Jeyev Veldrews. Veldrews não estava ali, e só com Cudgel havia cerca de 30 homens. Cudgel explicou que o Ironclad Regiment agora contava com mais de 100 homens. A maioria, porém, ela havia deixado acampados, sob a supervisão de Veldrews, fora da cidade. Muitos mercenários em um festival cheio de jovens mulheres e bebidas como aquele seria confusão certa. Ainda assim, tinha trazido consigo um pequeno grupo. Segundo ela, antes de morrer, Ispin teria a convidado para trazer seus homens e participar da reencenação da Batalha da Colina Alta daquele ano, e fazer daquela comemoração uma festa mais especial ainda. Foi o que Cudgel explicou a Raven Uth Vogler, prefeita da cidade, que prontamente acatou a sugestão póstuma de Ispin, entusiasmada com a possibilidade de, naquele ano, poder ter enfim uma encenação mais realista da batalha da Colina Alta. Seria também, Martin pensava ao saudar ele próprio Cudgel, que o recebeu com um forte abraço, uma grande festa em honra da memória de seu falecido pai.
Mas antes da encenação, que ocorreria apenas no fim da tarde, o Kingfisher Festival ainda tinha muitas atrações e atividades. Raven Uth Vogler, a prefeita da cidade, convidou a todos no Brass Crab para percorrerem as diversas feiras, o parque, e se divertir em todos os brinquedos e atividades possíveis. O Kingfisher Festival estava apenas começando, e a festa e a alegria não tinham hora para terminar.
Becklin exigiu saber quem era Rhimarim, e Astray se esforçou para esclarecer que não sabia também que ele estava ali escondido. Rhimarim, por sua vez, estava fascinado com a descoberta da biblioteca, bem como com tudo que escutara. Ele próprio explicou para Becklin quem era: um estudioso das artes arcanas e caçador de antigos conhecimentos e mistérios; um seguidor de Lunitari e membro de uma antiga família de magos de Kalaman; e um postulante a, um dia, se tornar um Mago da Alta Feitiçaria de Robe Vermelho. Rhimarim de fato parecia saber muito, mas a sempre desconfiada Becklin, ainda mais naquela situação, não iria confiar nele assim tão rápido. A Cavaleira da Solamnia, então, decidiu que sua história poderia esperar e convidou Astray e Rhimarim a segui-la para fora do Forte: eles precisavam falar com a prefeita Raven Uth Vogler para decidir o que fariam com as informações sobre o exército que se movimentava na região. Becklin, porém, insistiu que não comentassem com ela, nem com mais ninguém, acerca da Rosa Negra. Aquela era uma informação, ela acreditava, que dizia respeito a uma ameaça relacionada apenas aos Cavaleiros da Solamnia.

Quando encontraram a prefeita ela estava na praça principal de Vogler, com alguns membros da milícia, tentando apaziguar uma confusão que havia se iniciado entre Martin Greenshield e Bakaris Uth Estide, o jovem. O jovem e arrogante nobre havia provocado mais uma vez Martin e seus amigos, da mesma forma que fizera mais cedo no funeral de Ispin no Brass Crab, chamando-os de caipiras e imbecis sem nenhuma educação ou fineza. Ademais, ele havia feito um acordo com Martin sobre um jogo que havia no festival, que agora ele se negava a cumprir. Ainda embriagado, Martin quase atacara o jovem nobre, e estava prestes a se digladiar com o guarda pessoal de Bakaris, um mercenário de nome Urkin, quando Ryushi intercedeu, pedindo para que o amigo guerreiro se acalmasse. A prefeita também conseguiu conversar com Lorde Bakaris o jovem, convencendo-o a sair dali para evitar maiores confusões, e que funcionou com o nobre deixando a festa mais uma vez acusando todos de serem pessoas sem senso de humor ou sofisticação. Antes que Martin ou qualquer outro pudesse reagir contra o jovem e arrogante nobre, a prefeita convidou a todos para irem imediatamente até a Colina Alta, onde a reencenação da Batalha de Vogler iria começar, providencialmente, um pouco mais cedo do que de costume. Becklin sabia que não conseguiria falar com a prefeita naquele instante. De qualquer, assim ela acreditava, a conversa poderia esperar até a noite, após a reencenação, quando todos estariam mais tranquilos provavelmente.
A Batalha da Colina Alta
Martin convidou seus amigos a participar da reencenação do lado da tropas da Solamnia, formadas pela velha milícia da cidade que fora treinada por seu pai. Mordek aceitou, já Ryushi, que não se interessava muito em participar, foi convidado pela prefeita a ser um dos juízes da reencenação. Ryushi aceitou e acompanhou a prefeita à parte mais alta da crista da Colina Alta. Becklin, sentindo que talvez ali houvesse uma oportunidade de falar com a prefeita, pediu para acompanhá-la também. Astray, por sua vez, decidira participar, porém, não do lado das “tropas da Solamnia”, mas sim das “tropas de Istar”, que seriam interpretadas pelos membros do Ironclad Regiment que estavam na cidade. Seu objetivo era falar com Cudgel o quanto antes e contar sobre a ameaça do exército, esperando que a experiente comandante mercenária pudesse ajudá-los de alguma forma.
Astray relatou brevemente a Cudgel sobre o ataque aos Cavaleiros da Solamnia na estrada para Vogler e do embate com as estranhas criaturas. Também explicou sobre o temor de haver um exército nas redondezas de dirigindo a Kalaman. Cudgel explicou que não vira nenhum exército em muito tempo, mas que aquelas informações sem dúvida mereciam atenção. Ela pediu para Astray ficar no campo de batalha ocupando seu lugar na reencenação, e aproveitaria o momento para conversar com a prefeita e Becklin, na crista da colina, reforçando a urgência do caso. Astray, assim, permaneceu assumindo o piso de um dos sargentos fictícios das tropas inimigas. Acompanhava-o, desde que deixaram o Forte Thornwall, Rhimarim, sempre de perto, tomado inteiramente pela necessidade de seguir conversando com Astray acerca da maravilhosa biblioteca secreta que haviam encontrado e que tinha parte do acervo da Biblioteca de Arzemund, tida por todos os acadêmicos conhecidos como uma mera alegoria dos conhecimentos do passado que se perdera após o Cataclisma. Aquilo era algo realmente inacreditavelmente fantástico, o jovem mago insistia, e sua empolgação era tão grande que ele sequer percebeu que já se colocava ao lado de Astray na encenação, como um dos soldados das tropas de Istar.
Durante algum tempo, antes da encenação da batalha em si começar, as tropas trocavam falsos insultos e ensaiavam golpes cênicos se divertindo no processo. Após muitas risadas e provocações, o sinal do combate foi tocado por um corneteiro. “Vamos colocar esses ratos Istarianos para correr!”, gritou alguém do lado das tropas da Solamnia. “Por Istar!”, outro participante respondeu gritando em meio ao grupo que atravessava o campo de batalha correndo. Os dois grupos se encontraram no caminho e, enfim, a reencenação teve início.
Porém, subitamente, um urro de dor bastante convincente preencheu o ambiente. Outros se seguiram. Em meio a poeira, a confusão e o barulho Martin Greenshield percebeu que havia algo errado. Alguns dos mercenários do Ironclad Regiment, que representavam os soldados de Istar, pareciam estar usando armas de verdade e atacando de maneira muito convincente os membros da milícia de Vogler que personificavam os soldados da Solamnia. Um corpo tombou ao lado de Martin sem vida. Do alto, da crista da colina, de onde atuava como juíz, Ryushi compreendeu primeiro, assustado, o que estava de fato acontecendo: os mercenários do Ironclad Regiment estavam realmente atacando para matar. O jovem ferreiro buscou seus amigos no campo de batalha e logo percebeu que para Martin e Mordek a situação já estava clara e ambos tentavam fazer o possível para proteger os aldeões. Para Astray e Rhimarim, porém, que estavam no meio das tropas de Istar, entre os mercenários, essa percepção ainda não viera e ambos seguiam alheios ao banho de sangue que se iniciara. Ele precisava ajudar seus amigos. Mas, antes de sair, instintivamente Ryushi olhou para onde Raven, a prefeita, e Becklin estavam ainda a tempo de ver Cudgel se esgueirando por detrás da Cavaleira da Solamnia e erguendo sua arma para desferir-lhe um golpe mortal pelas costas. Ryushi gritou para Becklin, alertando-a do perigo, e foi o suficiente para que a Cavaleira usasse sua espada para bloquear o golpe traiçoeiro de Cudgel.
Astray e Rhimarim estavam completamente desprevenidos quando mercenários montados em cavalos e com lanças avançaram por trás deles. No último segundo, os reflexos de Astray o permitiriam reagir rapidamente e usar seu corpo para posicionar sua armadura e escudo para proteger a si mesmo e a Rhimarim de golpes fatais. Logo em seguida seu treinamento o permitiu assumir postura de combate e ele mesmo empunhar sua lança e adentrar inteiramente no combate. Em segundos seus olhos experientes de guerreiro o permitiram entender o que restava acontecendo: Cudgel e o Ironclad Regiment os haviam traído e covardemente atacado a milícia amadora de Vogler. Agora, ele tinha certeza do que antes havia apenas temido: Vogler estava em risco muito maior do que eles haviam inicialmente ousado imaginar.

O campo de batalha era uma grande confusão de gritos de desespero e morte, sangue e poeira. De um lado, Martin, com o apoio de Mordek e Ryushi – que havia avançado para dentro -, tentavam organizar a milícia de Vogler para evitar que fossem massacrados. Do outro lado, em meio aos mercenários, Astray e Rhimarim lutavam para sobreviver e no processo traziam significativas baixas ao bando de mercenários. Até que Gragohr adentrou no combate com sua imensa lâmina despedaçando corpos e esperanças. O gigantesco semi-ogro havia sido deixado no meio da reencenação por Cudgel para garantir a derrota da milícia de Vogler. Um soldado da milícia se arrastou pelo campo de batalha segurando suas próprias vísceras, implorando por sua vida, até os pés de Martin. Martin o conhecia: era um padeiro de Timor e ele, quando Martin era criança, sempre dera restos de pães para que comesse. Furioso, Martin atravessou o campo de batalha, arrastando consigo os membros da milícia que ainda resistiam bravamente. Ele encarou Gragohr que voltou-se para ele erguendo sua arma com o intuito de partir o jovem guerreiro em dois assim que ele se aproximasse. Mas Martin era mais rápido e ágil; com uma finta, distraiu o semi-ogro e em seguida ergueu com rapidez e precisão sua espada longa que num arco de baixo para cima abriu uma fenda no peito de Gragohr da virilha até o ombro. Em qualquer outra pessoa um golpe daqueles teria sido absolutamente fatal. Mas Gragohr era uma máquina de destruição quase irrefreável. O semi-ogro, mesmo sentindo o golpe, ainda foi capaz de preparar mais uma vez sua lâmina e agora iria atingir Martin – que abrira completamente seu flanco quando atacou – com facilidade. Porém, Martin não estava sozinho. O escudo de Astray se interpôs entre a lâmina de Gragohr e a cabeça de Martin, e o golpe foi desviado. O semi-ogro agora estava ainda mais furioso, e sua fúria apenas aumentou quando duas flechas atiradas do arco de Mordek atingiram seu grosso pescoço com precisão, fazendo seu sangue jorrar sobre seus oponentes. Quase que imediatamente em seguida, um jato flamejante, invocado pela magia de Rhimarim, incendiou o rosto de Gragohr. O fogo não o feriu muito, mas deu a Martin a distração de que ele precisava: ele se posicionou mais vez e dessa vez, com um salto, fez a ponta de sua espada longa penetrar entre as costelas do flanco esquerdo do mercenário semi-ogro, trespassando-lhe o coração. O corpo de Gragohr tombou sem vida com um estrondo no solo do campo de batalha.
Quando os mercenários, que não haviam esperado tanta resistência, viram Gragohr cair, a moral deles imediatamente afundou. Ao perceber isso, Cudgel ordenou uma retirada, e em instantes o campo de batalha estava tomado apenas pelos mortos e feridos da milícia de Vogler. Raven Uth Vogler tentava controlar seu medo e esconder sua confusão. De Becklin ela buscava respostas: o que havia acontecido? Por que Cudgel e o Ironclad Regiment haviam cometido um ato de traição daqueles? Ela precisava de respostas. Astray então, após trocar um olhar rápido com Becklin, decidiu que eles precisavam agora contar a prefeita de Vogler tudo o que sabiam até o momento. Reuniram-se na prefeitura da cidade com a prefeita Astray e Becklin, acompanhados de Martin, Rhimarim, Ryushi e Archimond. Esse último, embora não estivesse presente na batalha recente da Colina Alta, enfrentara os soldados de Takhisis junto com os outros e seu relato era também importante. Ao ouvir tudo aquilo a única reação possível para Raven foi a de pedir ajuda aos aventureiros. O que ela deveria fazer? Quão grande era o perigo contra Vogler? Ela precisava desesperadamente da ajuda de cada um deles para salvar sua cidade.
Becklin concordou que eles precisavam de mais respostas antes de tomar uma decisão. Ryushi ponderou que mais da metade do Ironclad Regiment havia ficado acampado do lado de fora da cidade, a cerca de quatro quilômetros. Aquilo tanto poderia significar que Cudgel subestimara Vogler, quanto que ela talvez não tivesse confiança total de todos seus homens para aquela missão traiçoeira. Martin e Astray achavam que isso fazia sentido. Haviam conhecido muitos bons homens no Ironclad Regiment. Pais de família, que vendiam sua experiência com a espada para colocar alimento na boca de seus filhos. Mercenários, sim, mas também guerreiros honrados e pessoas que talvez não aceitassem participar de um ataque tão desonrado como aquele que Cudgel e Gragohr lideraram. Astray lembrou de Jeyev Veldrews, um dos mais experientes membros do Ironclad Regiment e que era também um dos tenentes de Cudgel. Ele e Cudgel viviam as turras pois frequentemente discordavam de que linha de ação seguir. Veldrews sempre se opunha, principalmente, a qualquer estratégia que pudesse sacrificar as vidas de membros do grupo. De qualquer forma, eles sabiam que precisavam ir até o acampamento do Ironclad Regiment. Ou encontrariam com alguns mercenários dispostos a colaborar, ou tinham alguma chance e de encontrar a própria Cudgel e exigir dela algum tipo de resposta. Assim o grupo juntamente com Becklin seguiu em direção ao local onde o grupo de mercenários havia acampado. O sol já começava a se pôr, então.
Entretanto, em determinado momento, a cerca de dois quilômetros de onde o acampamento dos mercenários estavam, algo chamou a atenção do grupo. No alto da crista de um dos muitos cânions da região eles avistaram três silhuetas de cavaleiros montados usando mantos escuros. Becklin sabia bem o que aquilo significava, e sabia agora o que eles procuravam. Ela decidiu ali se separar do grupo disposta a impedir os cavaleiros a qualquer custo. Astray, porém, insistiu que ela não fosse sozinha. Becklin disse que aceitaria ajuda, ela bem sabia que precisava, mas insistiu que não aceitaria que Martin a acompanhasse. Ao ser interpelada por Martin do motivo disso a Cavaleira da Solamnia apenas abaixou a cabeça e murmurou que Ispin jamais a perdoaria se ela o levasse consigo. Decidiram então que Rhimarim, Ryushi e Archimond a acompanhariam. Astray, Mordek e Martin, os três que já conheciam bem o Ironclad Regiment iriam ao encontro destes. E assim, os caminhos se dividiram.