Rastro de Cthulhu é uma releitura do clássico RPG Chamado de Cthulhu usando o sistema de regras GUMSHOE. Campanhas no cenário de Cthulhu envolvem sempre histórias baseadas nos contos de H. P. Lovecraft e a investigação de casos de horror sobrenaturais. Ao mesmo tempo em que vão descortinando o mistério, os personagens investigadores também vão se dando conta de que existem forças além da capacidade de compreensão humana e correm o risco de ficarem insanos.
Ex: a história se passa na Nova Inglaterra, costa leste dos EUA, nos anos trinta, e os personagens vivem em Arkham, uma cidade universitária às margens do Rio Miskatonic.
A ideia do sistema GUMSHOE é de que o objetivo de um jogo de investigação não está em achar as pistas, mas em interpretá-las. Por isso, o jogador não joga para encontrar pistas. Se o personagem possuí a habilidade investigativa relevante, ele é capaz de encontrar a pista necessária para a história seguir adiante. O sistema GUMSHOE foi criado por Robin D. Laws, que também criou o fantástico RPG Feng Shui – outro de meus sistemas preferidos. Já o Rastro de Cthulhu é da autoria de Kenneth Hite, um dos maiores conhecedores de temas lovecraftianos.
Rastro pode ser jogado em dois modos: Purista ou Pulp. O modo Purista imita o estilo das histórias de Lovecraft em que os Investigadores não têm muita esperança de sobrepujar as entidades do Mythos e veem sua sanidade ser corroída aos poucos enquanto descobrem os mistérios. O modo Pulp privilegia o estilo das histórias pulp de ação daquela época, em que os heróis enfrentam o mal e têm (um pouco mais) chance de sobreviver. O narrador pode usar elementos de ambos os modos.
Regras e Criação de Personagens
Rastro não usa atributos (como Força e Inteligência), mas apenas habilidades investigativas e gerais. A criação do Investigador é feita com um número variável de Habilidades Investigativas a depender do número de jogadores na campanha (com 4 ou mais jogadores são 16 pontos de Habilidades Investigativas) e 65 pontos em Habilidades Gerais.
Saúde (que mede a resistência física) e Estabilidade (a resistência mental) são limitadas a 12 pontos em jogos no estilo Purista. Elas são habilidades gerais, mas também funcionam como uma espécie de atributo físico e mental dos personagens.
Sanidade é uma habilidade que indica o quanto o personagem está longe de sucumbir aos horrores cósmicos dos Mythos. Ao longo do tempo ela irá diminuir e quando chegar a zero o personagem estará irremediavelmente perdido, enlouquecendo ou tornando-se um servidor dos Grandes Antigos. Em um jogo purista a Sanidade máxima é 10.
Fazer um personagem em Rastro é bem simples:
- Escolher uma Ocupação (a ocupação permite comprar algumas habilidades pela metade do custo e oferece um benefício ocupacional)
- Selecionar uma Motivação (é o que move o personagem a continuar a tentar descobrir o mistério, quando o mais sábio seria ignorar – como o resto da humanidade faz)
- Escolher as Habilidades Investigativas
- Escolher as Habilidades Gerais
- Determinar os Pilares de Sanidade
- Determinar as Fontes de Estabilidade.
Habilidades Investigativas são justamente as perícias acadêmicas, técnicas e interpessoais que permitem descobrir pistas. Qualquer ponto colocado em uma habilidade acadêmica já indica que o personagem conhece aquela área de conhecimento. O nível 3 ou 4 já o coloca como um dos melhores naquele campo. O personagem não precisa gastar pontos para achar pistas centrais (aquelas necessárias para mover a história adiante), mas pode usá-los para descobrir uma informação extra ou ganhar algum benefício especial. Os pontos gastos em habilidades investigativas retornam no final da aventura.
Cthulhu Mythos é uma habilidade investigativa que só pode ser adquirida em jogo, normalmente lendo livros profanos. Seu uso sempre custa Estabilidade e Sanidade. A sanidade de um investigador nunca pode ser maior do que 10 menos o nível em Cthulhu Mythos.
Habilidades Gerais são aquelas que envolvem testes, como dirigir, pilotar, lutar ou – no caso de encontrar criaturas e cultistas – fugir. O teste envolve jogar 1 dado de 6 faces, com o objetivo de tirar um resultado igual ou maior do que a dificuldade (que vai de 2 a 8, sendo 4 uma dificuldade média). O jogador pode gastar pontos da habilidade para adicionar ao teste [Ex: ele tem Armas de Fogo 6, ele pode usar 2 pontos em um teste e jogar 1d6 +2], aumentando as chances de sucesso ou até tornando o teste desnecessário se gastar pontos iguais à dificuldade estabelecida. Um nível 8 ou mais em uma habilidade geral já indica que o personagem é bom naquele campo. Os pontos de habilidades gerais também são recuperados entre aventuras ou em certas oportunidades durante o jogo.
Pilares de Sanidade: para cada três pontos em Sanidade, o jogador deve definir algo em que o investigador acredite e confie. O Pilar de Sanidade deve ser um princípio abstrato como uma fé religiosa, a bondade humana, o progresso científico, o patriotismo, etc. A medida que for perdendo sanidade, o personagem irá também perder esses pilares de sanidade.
Fontes de Estabilidade: são pessoas em quem o personagem confia e que servem como um porto seguro. Para cada três pontos de Estabilidade, o jogador deve nomear uma pessoa que o ajuda a manter sua sanidade, mesmo quando o mundo parece desabar a sua volta. Ex: Penny Widmore, esposa do Investigador; Daniel Faraday, amigo de universidade.
OBS: Existe um gerador de personagens muito bom criado para fazer personagens de Rastro: https://theblackbook.io/
Em direção à loucura
Quando um personagem encara algo que afete sua estabilidade, ele faz um teste de Estabilidade (dificuldade 4). Se perder no teste, ele perde estabilidade de acordo com a gravidade da situação. A estabilidade pode ser recuperada entre aventuras (ou até durante, em algumas circunstâncias).
Se a situação envolve alguma revelação ligada ao Mythos, o teste é mais difícil (dificuldade 5 ou mais) e a perda de estabilidade também será maior. Além disso, se a estabilidade cair a 0 ou menos, o personagem perde Sanidade. É possível evitar/diminuir a perda de Sanidade, por meio da negação ou desmaiando. Mas aos poucos, ela irá diminuindo, até que o personagem ficará insano e fora do jogo. Essa é uma das diversões de jogar um RPG de horror. Em um jogo Purista, Sanidade não é recuperável.
Ambientação
Rastro é ambientado na década de 1930. Uma campanha pode envolver tanto viagens pelo mundo como ser centrada em um local. É a época da Grande Depressão. O capitalismo passa por sua maior crise. As taxas de desemprego são altas, chegando a 30% em 1930 e ficando em torno de 15%. Graças à queda da Bolsa de Nova York, as ações das grandes empresas perderam a maior parte de seu valor, a pobreza campeia e pessoas perdem suas casas para os bancos, sendo forçadas a morar em acampamentos de sem-tetos. Em meio a essa terrível crise do capitalismo, a democracia enfrenta inimigos terríveis nas figuras da ameaça comunista e do fascismo.
O livro sugere alguns estilos de campanhas, como:
The Armitage Inquiry, em que os jogadores atuam em conjunto com o Prof. Henry Armitage (bibliotecário chefe da Universidade Miskatonic e personagem do conto Horror em Dunwich) e outros professores da universidade que tiveram contato com os horrores do Mythos. Esse cenário tem uma campanha chamada The Armitage Files que é a primeira campanha sandbox para Rastro de Cthulhu e é simplesmente genial. Ele também pode servir de base tanto para adaptar várias das aventuras prontas de Chamado de Cthulhu que se passam na região da Nova Inglaterra para o cenário ou a série de campanhas Mythos Expeditions do próprio Rastro, que envolvem expedições patrocinadas pela Universidade Miskatonic para vários lugares do globo durante os anos 1930.
Uma campanha nesse cenário é uma espécie de mistura de Fringe (o seriado de TV) nos anos 1930 com Indiana Jones, seguindo a sugestão do livro de fazer um resumo em uma frase da série.
Bookhounds of London: uma campanha que se passa em Londres, com os personagens sendo proprietários de uma livraria especializada em livros antigos e de ocultismo.
Se tiver curiosidade, fiz uma resenha do Bookhounds of London.
Project Covenant: uma campanha que adapta o cenário de Delta Green para os anos 1930, logo depois que o governo dos EUA teve seus primeiros contatos com criaturas do mitos (baseado no conto A Sombra sobre Innsmouth )
A Pelgrane Press também adaptou o cenário de Delta Green para o sistema GUMSHOE na época de 1960 no maravilhoso livro Fall of Delta Green.
O capítulo sobre o Mythos é muito bem escrito, mas os jogadores devem evitar lê-lo. Esse é realmente um capítulo voltado para os narradores, com ótimas dicas de como usar as criaturas, deuses e cultos de uma forma a surpreender os jogadores, mesmo se esses conhecerem as histórias de Lovecraft.
Além disso, Rastro de Cthulhu traz sugestões para jogadores e narradores. Para os jogadores estão a de seguir a Motivação do personagem e usá-la como uma fonte de inspiração; sempre se lembrar que quando estiver sem ideias, a solução é buscar novas pistas, falar com os npcs e evitar ficar travado fixamente em um local. Outra boa dica é se lembrar de usar as habilidades investigativas, especialmente as interpessoais, como uma fonte de informações, contatos e acesso a lugares e novas pistas. Para os narradores, as sugestões são de como criar uma estrutura de mistério, com pistas centrais e foco nas habilidades dos Investigadores.
Rastro é um sistema com um foco narrativista que vai agradar aos narradores e jogadores que gostam de regras simples e fáceis de aprender. Além disso, Rastro tem campanhas notáveis, como Eternal Lies, e suplementos diferentes e interessantes, como Dulce et Decorum Est, Dreamhounds of Paris (um suplemento realmente surreal), Cthulhu City (um cenário no qual o Mythos ganhou), Soldiers of Pen and Ink (que se passa na Guerra Civil Espanhola) e uma série de suplementos puristas já traduzida pela Retropunk como A Agonia de St. Margaret, Os Observadores no Céu, A Dança no Sangue e a Caixa Dilaceradora.